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sábado, 1 de setembro de 2012

Comentário sobre a Epístola de Paulo a Filemom


Comentário sobre a Epístola de Paulo a Filemom

A EPÍSTOLA DE PAULO A FILEMOM
Mesmo nas melhores galerias de arte existe sempre um espaço para miniaturas selecionadas. Esta nota pessoal de Paulo a Filemom é uma dessas graciosas obras-primas de “delicadeza, tato refinado e até mesmo perspicácia espirituosa”, e apesar de possuir um valor espiritual assim distinto, só podemos lamentar que alguns tenham relutado em conceder-lhe o pequeno nicho que adorna. Nas palavras de G. G. Findlay: “Em cada linha e sílaba, esta nota expõe a personalidade de Paulo. Nada mais sincero jamais foi escrito”.
Parece até indigno de menção que, a partir do quarto século, quando ela foi questionada como supostamente inferior à dignidade da autoria apostólica, houve alguns que passaram a ter dúvidas sobre a mesma. Não precisamos nos demorar nesse aspecto. O comentário recente do erudito Deão Alford bastará: “A carta foi preservada na família para a qual foi dirigida e lida primeiro, sem dúvida, como uma mensagem apostólica de amor e bênção, na igreja que se reunia na casa de Filemom. A seguir, suas cópias multiplicaram-se e ela se espalhou de Colossos para a igreja universal. Ela foi citada já no segundo século e permaneceu sempre como uma porção indiscutível dos escritos de Paulo, exceto com relação a alguns que suspeitam de tudo.”
Podemos muito bem agradecer a sua preservação até nossos dias.
Pontos de Interesse
Embora muito curta, esta nota a Filemom tem pontos de interesse peculiares. Ao refletirmos sobre o assunto, vemos que Paulo deve ter escrito inúmeras cartas curtas, além de suas “epístolas”. Esta é a única carta pessoal que sobreviveu até nossos dias. Não existe qualquer tentativa de mostrar linguagem eloqüente na mesma, mas trata-se de um modelo perfeito de “tato, delicadeza e bons sentimentos” em relação a uma difícil situação entre senhor e escravo. Ela é uma pequena janela reveladora que dá um vislumbre dos contatos mais íntimos e da disposição do apóstolo, fornecendo uma ilustração prática única do princípio cristão aplicado ao relacionamento social. Ela diz pelo exemplo o que Gálatas e Colossenses afirmam em preceito, quanto à “inutilidade da posição mundana” na igreja, isto é, “Não há escravo nem livre em Cristo Jesus”. Basta conhecer a situação miserável e desesperadora dos escravos sob a lei romana, para compreender a que ponto Paulo chega, ao pedir ao Senhor de escravos que receba de volta o ladrão fugitivo como “irmão caríssimo” (v.16).
As Pessoas Envolvidas
A carta a Filemom refere-se a um certo Onésimo. Quem era Filemom? E quem era Onésimo?
Paulo dirige-se ao primeiro como “ao amado Filemom, também nosso colaborador”. Isto parece indicar de imediato não apenas um contato anterior, como também uma amizade já existente; sendo isto confirmado pelos vv. 19 a 21, implicando em que ele era um dos convertidos de Paulo. Uma comparação da carta com Colossenses 4.9 mostra que Filemom vivia em Colossos, para onde Onésimo estava agora voltando. Filemom era homem livre; senhor de escravos, provavelmente da classe mais alta na sociedade; e um líder cristão local, pois Paulo fala da “igreja em sua casa” (v.2). A “irmã Áfia” e “Arquipo, nosso companheiro de lutas” (v.2) parecem ter sido respectivamente sua esposa e filho. Durante a visita de Paulo a Colossos, Filemom provavelmente fora influenciado por ele em Éfeso (cerca de 190 km a oeste) durante os três anos memoráveis de Paulo ali; pois havia muito intercâmbio entre Éfeso, a capital, e cidades como Colossos. Arquipo, filho de Filemom, parece ter sido pastor em Colossos ou Laodicéia (Cl 4.17).
Quanto a Onésimo, ele era um dos escravos de Filemom, como a carta em breve esclarece. Quando a Epístola aos Colossenses foi enviada de Roma, através de Tíquico, Onésimo o acompanhou (Cl 4.7-9). Os dois levaram também esta nota a Filemom.
Antecedentes Históricos
Onésimo, provavelmente um escravo doméstico de Filemom, fugira, e o v.18 parece indicar que furtara dinheiro de seu senhor para efetuar a fuga. Ele saíra da “Ásia”, em direção ao Ocidente, atravessando o mar Egeu e Adriático, e chegando a Roma, esse refúgio populoso procurado por muitos outros fugitivos. Jamais pensou que pudesse voltar a Colossos; mas em Roma ficou sob a influência de Paulo, convertendo-se sinceramente e voltou mais tarde a Colossos completamente transformado. Como Paulo achava-se então prisioneiro em Roma, parece ainda mais notável que os dois se encontrassem. Mas nessa mesma ocasião, Epafras tinha viajado de Colossos para visitar Paulo; e talvez seja tanto uma coincidência como uma providência dominante que ele tivesse visto e reconhecido Onésimo em Roma.
Onésimo cresceu rapidamente “na graça” e foi útil a Paulo (vv. 11, 12), ajudando tanto o apóstolo que ele o teria mantido a seu lado em Roma (v. 13). Mas, não podia fazer isso, Onésimo era propriedade de Filemom e o apóstolo enviou-o de volta com Tíquico, levando a Epístola aos Colossenses e a nota particular a Filemom.
A Carta
O que Paulo poderia dizer a um senhor tão ultrajado? Castigos terríveis eram impostos pelas leis romanas para tais ofensas, chegando até à pena de morte. O Bispo Lightfoot comenta: “O escravo ficava absolutamente à disposição do senhor: pela menor ofensa ele podia ser açoitado, mutilado, crucificado, atirado às feras”. Mas Filemom era um irmão em Cristo, cujo fato abrandava bastante a situação, dando a Paulo uma base para o seu apelo. A pequena carta foi assim composta e enviada em sua delicada missão.
Que pequena obra-prima de diplomacia esta carta constitui! Leia o seguinte elogio do Dicionário Bíblico de Smith:
“A epístola a Filemom… foi merecidamente admirada como um modelo de delicadeza e habilidade no departamento de composição a que pertence. O escritor teve dificuldades peculiares a superar. Ele era amigo de ambas as partes. Deveria aplacar o homem que supunha ter boas razões para sentir-se ofendido. Era preciso elogiar o ofensor, sem negar ou agravar a falta cometida. Tinha necessidade de confirmar as novas idéias da igualdade cristã em face de um sistema que dificilmente reconhecia a natureza humana do escravo. Ser-lhe-ia possível colocar a questão com base em seus direitos pessoais; todavia, era preciso desistir deles, a fim de assegurar um ato de bondade espontânea. Os seus esforços deveriam resultar num triunfo do amor, sem fazer qualquer exigência apoiado na justiça, embora esta pudesse ter reivindicado tudo. Seu pedido fica, pois, limitado ao perdão da falta alegada e à restauração do escravo às boas graças do amo, recebendo dele simpatia e afeto no futuro. Mas o apóstolo cuidou para que suas palavras abrissem espaço para toda a generosidade que a benevolência pudesse conferir a alguém, cuja condição desse ensejo a tamanho ato de amor. Estas são contradições difíceis de harmonizar; Paulo, no entanto, segundo se admite, mostrou um elevado nível de autonegação e tato ao tratar com as mesmas, mostrando seu talento para enfrentar a situação”.
Ao sentar-se para escrever a Filemom, ele mal poderia imaginar que sua pequena nota ficaria sujeita a séculos de análises expositivas e homiléticas! Porém, esta é a penalidade imposta a quem escreve algo que tem vida! Quem se incomoda com uma “carta morta”? Todavia, qualquer coisa, além de uma simples análise desta nota a Filemom, prejudica o seu propósito. Seria como dissecar as batidas do coração! Tudo o que precisamos ver é que os vv. 1-7 referem-se a Filemom; os vv. 8-17 a Onésimo; e os vv. 18-22 são sobre Paulo. No primeiro grupo de versículos, a abordagem diplomática e afetuosa do apóstolo, em sua intercessão por Onésimo, consiste de louvor sincero a Filemom. No segundo grupo de versículos, ele apresenta habilmente sua súplica a favor do ladrão fugitivo, mas agora convertido, Onésimo. No terceiro grupo, Paulo assume o compromisso solene de pagar o que quer que Onésimo tenha roubado. Assim sendo:
  • Saudação (vv. 1-3).
  • LOUVOR DE PAULO A FILEMOM (vv. 4-7).
  • SÚPLICA DE PAULO POR ONÉSIMO (vv. 8-17).
  • COMPROMISSO E CONFIRMAÇÃO DE PAULO (vv. 18-22).
  • Saudações: Bênção (vv. 23-25).
Como já dissemos, Paulo faz um jogo de palavras com o nome “Onésimo”, que significa útil. Veja o v. 11: “Onésimo…Ele, antes te foi inútil; atualmente, porém, é útil, a ti e a mim”.
Há um toque belíssimo no v. 19, onde Paulo, ao assumir um compromisso com Filemom, acrescenta: “Eu, Paulo, de próprio punho, o escrevo: Eu pagarei”. Não parece haver um humor ingênuo no tom solene e deliberado?
Se permitirmos, esta breve carta pode pregar verdades poderosas para nós. Eis a primeira: Os males sociais são mais depressa modificados por vidas transformadas. Como este assunto, Filemom-Onésimo, era simples em comparação com os problemas patrão-empregado da indústria moderna! Todavia, eis aqui o segredo desvendado que pode resolver toda disputa social e industrial, para o bem-estar dos homens e honra de Deus, i.e., a aplicação de princípios cristãos por indivíduos cristãos.
A verdadeira conversão a Cristo sempre fará o homem colocar o princípio adiante da simples conveniência. Para alguns, teria sido uma questão de Onésimo ter realmente necessidade de voltar. A sua conversão mais do que compensou o roubo e a fuga. Filemom, com certeza veria isso e perdoaria o comportamento que Onésimo tinha “antes da conversão”. Mas, foi assim que Paulo raciocinou? Será que ele disse: “A melhor coisa agora é não dizer nada a respeito?” Foi assim que o próprio Onésimo viu a situação? Não. Onésimo, da mesma forma que Paulo, sabia o que era certo e qual a atitude cristã, e decidiu tomá-la custasse o que custasse, por causa do Salvador.
Veja também nesta carta o valor de um escravo ladrão e fugitivo! Houve um predomínio providencial na vida de Onésimo, como aconteceu no Livro de Ester. Deus estava vigiando, amando e orientando. Veja a dignidade que o cristianismo confere ao escravo, fazendo dele um “irmão” e dando-lhe o mesmo nível espiritual em Cristo! Precisamos admirar-nos de que tal ensino finalmente viesse a abolir a escravatura, emancipasse a mulher e reinvidicasse a justiça social para todos os homens como iguais?
Mais uma vez, não podemos deixar de ver uma espécie de analogia entre esta carta a Filemom e o caminho da salvação do evangelho. Sob a lei romana, o escravo não tinha direito de asilo. Se ele fugisse e fosse apanhado, o seu dono tinha o direito de desfigurá-lo, aleijá-lo ou até matá-lo. Mas era concedido pelo menos um direito ao escravo, a saber, apelar para o amigo do seu senhor, fugindo para procurá-lo a fim de que o defendesse e não para que o escondesse. O dono continuava senhor absoluto, mas o amigo a quem o escravo apelasse podia apresentar-lhe seu pedido de perdão e ele ouviria por causa do amigo também livre, mesmo que não fosse por causa do infeliz escravo. Isto seria ainda mais provável se o amigo fosse um sócio do senhor de escravos. Além disso, o escravo que fugisse para um tal intercessor não incorria na culpa e castigo de uma escapada comum. Ele também tinha possibilidade de ser libertado, como certos escravos fiéis algumas vezes o eram, através da adoção pela famí1ia do senhor.
Com essas idéias em mente e a carta a Filemom aberta à sua frente, veja o paralelo com o caminho da salvação do evangelho. Como seres humanos, você e eu somos propriedade de Deus; mas como pecadores, nós O roubamos e somos fugitivos. Nossa culpa é grande e nosso castigo pesado. A Lei nos condena. A consciência nos persegue. Mas se a Lei nos condena, a graça nos concede o direito de apelar. Da mesma forma que Onésimo encontrou refúgio em Paulo, nós encontramos refúgio em Jesus. Além de ser o Amigo do pecador, ele é igualmente Amigo e Sócio dAquele de quem somos propriedade. Em Jesus encontramos tanto um interventor (intercessor) como um genitor (pai que gera), do mesmo modo que Onésimo encontrou em Paulo alguém que não só intercedeu por ele junto a Filemom, como também o levou ao segredo de uma nova vida (v. 10). Assim também, como Paulo aceitou a dívida de Onésimo, dizendo a Filemom: “Lança tudo em minha conta”, o Senhor Jesus aceitou sobre si graciosamente toda a nossa dívida e demérito, cancelando-os de uma vez para sempre. E agora, no momento em que Onésimo reconciliou-se sinceramente com Filemom e voluntariamente voltou a seu dono, nós também nos tornamos “reconciliados com Deus” e de nossa livre vontade voltamos a Ele, não mais rebeldes, ou mesmo escravos servis, mas para sermos alegremente “recebidos” por Ele “para sempre” (v. 15).

Ronildo da Cruz Ribeiro
IDPB Monte Horebe

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